Paulo Moreira Leite publica, na Istoé, um artigo que só merece uma qualificação: magistral. 
A argumentação é cerebral, mas a indignação é figadal.
Porque
 quem escreve e fala não pode, sob pena de emburrecer ou desumanizar-se –
 o que não é o mesmo, mas é parecido – deixar de pensar, como não pode 
deixar de sentir, com funda humanidade.
Temos, neste caso dos médicos cubanos, duas faces.
Uma,
 velha, velhíssima: um anticomunismo arcaico, que já era doentio há 50 
anos, na Guerra Fria e hoje é, simplesmente, lunático.
Parece que, como há 59 anos, naquele 24 de agosto fatídico, a razão está sob ataque dos corvos, agora em penas brancas.
Outra,
 mais e mais e mais velha ainda: o desprezo pelos seres humanos pobres, 
cujos direitos – inclusive os mais básicos, como a saúde e a vida – 
devem esperar que o “mercado” os resolva.
O
 tema voltará e voltará por muitos dias, até que a realidade desmanche 
os preconceitos, os benefícios anulem o ódio e faça a brutalidade recuar
 das bocas para os coraçÑoes miúdos desta gente.
Reproduzo o artigo magistral, repito, de Moreira Leite:
Em vez Havana?
O debate sobre a chegada de médicos cubanos é vergonhoso.
Paulo Moreira Leite 
Do
 ponto de vista da saúde pública, temos um quadro conhecido. Faltam 
médicos em milhares de cidades brasileiras, nenhum doutor formado no 
país tem interesse em trabalhar nesses lugares pobres, distantes, sem 
charme algum – nem aqueles que se formam em universidades públicas 
sentem algum impulso ético de retribuir alguma coisa ao país que lhes 
deu ensino, formação e futuro de graça.
Respeitando
 o direito individual de cada pessoa resolver seu destino, o governo 
Dilma decidiu procurar médicos estrangeiros. Não poderia haver atitude 
mais democrática, com respeito às decisões de cada cidadão.
O
 Ministério da Saúde conseguiu atrair médicos de Portugal, Espanha, 
Argentina, Uruguai. Mas continua pouco. Então, o governo resolveu fazer o
 que já havia anunciado: trazer médicos de Cuba.
Como era de prever, a reação já começou.
E
 como eu sempre disse neste espaço, o conservadorismo brasileiro não 
consegue esconder sua submissão aos compromissos nostálgicos da Guerra 
Fria, base de um anticomunismo primitivo no plano ideológico e selvagem 
no plano dos métodos. É uma turma que se formou nesta escola, transmitiu
 a herança de pai para filho e para netos. Formou jovens despreparados 
para a realidade do país, embora tenham grande intimidade com Londres e 
Nova York. 
Hoje, eles repetem o passado como se estivessem falando de algo que tem futuro.
Foi
 em nome desse anticomunismo que o país enfrentou 21 anos de treva da 
ditadura. E é em nome dele, mais uma vez, que se procura boicotar a 
chegada dos médicos cubanos com o argumento de que o Brasil estará 
ajudando a sobrevivência do regime de Fidel Castro. Os jornais, no 
pré-64, eram boicotados pelas grandes agencias de publicidade 
norte-americanas caso recusassem a pressão americana favorável à 
expulsão de Cuba da OEA. Juarez Bahia, que dirigiu o Correio da Manhã, 
já contou isso. 
Vamos
 combinar uma coisa. Se for para reduzir economia à política, cabe 
perguntar a quem adora mercadorias baratas da China Comunista: qual o 
efeito de ampliar o comércio entre os dois países? Por algum critério – 
político, geopolítico, estético, patético – qual país e qual regime 
podem criar problemas para o Brasil, no médio, curto ou longo prazo?
Sejamos
 sérios. Não sou nem nunca fui um fã incondicional do regime de Fidel. 
Já escrevi sobre suas falhas e imperfeições. Mas sei reconhecer que sua 
vitória marcou uma derrota do império norte-americano e compreendo sua 
importância como afirmação da soberania na América Latina.
Creio que os problemas dos cidadãos cubanos, que são reais, devem ser resolvidos por eles mesmos. 
Como
 alguém já lembrou: se for para falar em causas humanitárias para 
proibir a entrada de médicos cubanos, por que aceitar milhares de 
bolivianos que hoje tocam pedaços inteiros da mais chique indústria de 
confecção do país?
Denunciar
 o governo cubano de terceirizar seus médicos é apenas ridículo, num 
momento em que uma parcela do empresariado brasileiro quer uma carona na
 CLT e liberar a terceirização em todos os ramos da economia. Neste 
aspecto, temos a farsa dentro da farsa. Quem é radicalmente a favor da 
terceirização dos assalariados brasileiros quer impedir a chegada, em 
massa, de terceirizados cubanos. Dizem que são escravos e, é claro, 
vamos ver como são os trabalhadores nas fazendas de seus amigos.
Falar
 em democracia é um truque velho demais. Não custa lembrar que se fez 
isso em 64, com apoio dos mesmos jornais que 49 anos depois condenam a 
chegada dos cubanos, erguendo o argumento absurdo de que eles virão 
fazer doutrinação revolucionária por aqui. Será que esse povo não lê 
jornais?
Fidel
 Castro ainda tinha barbas escuras quando parou de falar em revolução. E
 seu irmão está fazendo reformas que seriam pura heresia há cinco anos.
O problema, nós sabemos, não é este. É material e mental. 
Nossos
 conservadores não acharam um novo marqueteiro para arrumar seu discurso
 para os dias de hoje. São contra os médicos cubanos, mas oferecem o 
que? Médicos do Sírio Libanês, do Einstein, do Santa Catarina?
Não.
 Oferecem a morte sem necessidade, as pragas bíblicas. Por isso não têm 
propostas alternativas nem sugestões que possam ser discutidas. Nem se 
preocupam. Ficam irresponsavelmente mudos. É criminoso. Querem deixar 
tudo como está. Seus médicos seguem ganhando o que podem e cada vez 
mais. Está bem. Mas por que impedir quem não querem receber nem 
atender? 
Sem
 alternativa, os pobres e muito pobres serão empurrados para grandes 
arapucas de saúde. Jamais serão atendidos, nem examinados. Mas deixarão 
seu pouco e suado dinheiro nos cofres de tratantes sem escrúpulos.
Em
 seu mundo ideal, tudo permanece igual ao que era antes. Mas não. 
Vivemos tempos em que os mais pobres e menos protegidos não aceitam sua 
condição como uma condenação eterna, com a qual devem se conformar em 
silêncio. Lutam, brigam, participam. E conseguem vitórias, como todas as
 estatísticas de todos os pesquisadores reconhecem. Os médicos, apenas, 
não são a maravilha curativa. Mas representam um passo, uma chance para 
quem não tem nenhuma. Por isso são tão importantes para quem não tem o 
número daquele doutor com formação internacional no celular.
O
 problema real é que a turma de cima não suporta qualquer melhoria que 
os debaixo possam conquistar. Receberam o Bolsa Família como se fosse um
 programa de corrupção dos mais humildes. Anunciaram que as leis 
trabalhistas eram um entrave ao crescimento econômico e tiveram de 
engolir a maior recuperação da carteira de trabalho de nossa história. 
Não precisamos de outros exemplos. 
Em 2013, estão recebendo um primeiro projeto de melhoria na saúde pública em anos com a mesma raiva, o mesmo egoísmo.
Temem
 que o Brasil esteja mudando, para se tornar um país capaz de deixar o 
atraso maior, insuportável, para trás. O risco é mesmo este: a poeira da
 história, aquele avanço que, lento, incompleto, com progressos e 
recuos, deixa o pior cada vez mais distante.
É
 por essa razão, só por essa, que se tenta impedir a chegada dos médicos
 cubanos e se tentará impedir qualquer melhoria numa área em que a vida e
 a morte se encontram o tempo inteiro.
 Essa
 presença será boa para o povo. Como já foi útil em outros momentos do 
Brasil, quando médicos cubanos foram trazidos com autorização de José 
Serra, ministro da Saúde do governo de FHC, e ninguém falou que eles 
iriam preparar uma guerrilha comunista. Graças aos médicos cubanos, a 
saúde pública da Venezuela tornou-se uma das melhores do continente, 
informa a Organização Mundial de Saúde. Também foram úteis em Cuba.
Os
 inimigos dessas iniciativas temem qualquer progresso. Sabem que os 
médicos cubanos irão para o lugar onde a morte não encontra obstáculo, 
onde a doença leva quem poderia ser salvo com uma aspirina, um cobertor,
 um copo de água com açúcar. Por isso incomodam tanto. Só oferecem 
ameaça a quem nada tem a oferecer aos brasileiros além de seu egoísmo.